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Março Mês da Mulher, Entrevista Vera Costa, Bombeira, Bombeiros Voluntários de Benavente

Estamos no Quartel dos Bombeiros Voluntários de Benavente e ao meu lado tenho Vera Costa, bombeira há 21 anos.

Quando eras menina, já sonhavas ser bombeira?

Nunca tive esse sonho, eu achava que quando fosse grande queria ser médica. Mas o meu pai sempre esteve ligado aos bombeiros, a minha família toda. O meu pai é bombeiro há 35 anos e eu enveredei pela causa e sigo por o meu pai lá estar e aos poucos fui vendo que estava dentro de mim ajudar o próximo.

Essa sempre foi a tua motivação?

Sim, olhar o próximo sem nunca olhar a que deem ou não deem. Ajudar, está em mim ajudar.

Nestes 21 anos tens algum episódio em que tenhas pensado ou colocado em causa: continuo ou vou mudar a minha vida radicalmente?

Sim, ao nível da emergência pré hospitalar a gente passa um bocadinho e vimos quando temos alguém do nosso lado que nos diz algo,  é muito mais difícil do que um popular que nós conhecemos, não deixa de ser difícil porque nos custa ver o sofrimento da pessoa, mas quando  é alguém nosso é muito difícil. Na altura tive um tio que faleceu de um acidente de viação onde fui eu a primeira a chegar ao local, nunca deixei de fazer aquilo que tinha a fazer, mas foi muito complicado. No fim da médica me dizer que não havia mais nada a fazer, parece que o mundo ia desabar ali à minha volta e pensei: Isto não é para mim, eu vou lidar com outras situações iguais e ainda por cima isto foi logo ao inicio de estar nos bombeiros a trabalhar como profissional. Pensei mesmo desistir, mas felizmente algo me chamou e algo me disse que era mais forte ficar e hoje continuo cá, forte.

 

É difícil ou consegues separar a Vera bombeira e a Mulher ou as duas vivem o dia inteiro contigo, as 24 horas por dia?

As duas vivem o dia inteiro comigo. Não consigo. Sempre foi uma coisa que a psicóloga disse na altura em que nós tirámos o TAS me disse foi: Vera tu tens que pôr os teus sentimentos à parte daquilo que é o teu trabalho diariamente e eu não consigo.

Dar-lhe o exemplo desta altura da pandemia. Eu agora chegava a casa e muitas vezes e muitas vezes estava com os meus pais a jantar e as lágrimas a caírem-me por tudo aquilo que vimos e que estávamos a passar. Esperemos que não vamos passar o mesmo, porque foi muito difícil.

Já que falaste aqui na Pandemia, tu foste uma das pessoas que estiveste muito nesta frente da Pandemia. Quando isto começa, quando surge, e que nós estávamos a viver isto completamente atípico nas nossas vidas. Assustou-te? Tiveste medo?

Sim. Eu trabalho nos bombeiros como já disse, e conforme eu também outras caras do corpo feminino e do corpo masculino a darmos o “corpo às balas”, como se costuma dizer. Nós vimos coisas que não deveríamos ver.

A pessoa não deveria sofrer tanto por isto acontecer. 

É uma coisa que me toca, ainda não está sarado e não vai ficar sarado muito facilmente.

 

Mas quiseste estar sempre na linha da frente.

Sim. Pensei muitos dias, de manhã quando me levantava para vir trabalhar, que não era capaz. Ia lidar com mais do mesmo, ia ver coisas que não deveria de ver, infelizmente. Mas depois lá pensava: as pessoas precisam de mim, eu tenho ajudar…

 

E pensavas também na família? Quando deixavas a tua família.

Eu tive dias em que o meu trabalho era das seta da manhã às três da tarde, ficava aqui e já não ia dormir a casa. Houve dias em que não fui dormir a casa para proteger os meus pais e o meu sobrinho que tem 22 meses, e o meu irmão é bombeiro e a minha cunhada. Tinha que pensar neles, principalmente neles, já não era em mim. Se tiver que apanhar apanhei, felizmente nunca me tocou a mim, tocou ao meu irmão e a colegas meus aqui dentro, mas tive muito medo, principalmente pelo menino que tem 22 meses e a gente não sabe o que poderia acontecer. a muleta “diz-me uma coisa…

Enquanto mulher, alguma das vezes, profissionalmente, sentiste que se fosses homem a coisa era diferente? Tiveste que te afirmar enquanto mulher. Achas que as mulheres de hoje em dia têm que se afirmar mais?

Não é a questão do afirmar, o direito de igualdade é para todos.  E dar o “corpo às balas” para aquilo que nos é proposto também damos.  Se calhar com um bocadinho de dificuldade, diferente de um homem, mas por exemplo nos incêndios florestais: eu lembro-me de ter ido uma vez para um incêndio no Caramulo, onde eu achei que estava no fim do mundo e achei que aquilo não era para mim. Eu não venho mãos para incêndios. Mas depois pensei: eu tenho ali quatro elementos da minha equipa e eu tenho que dar o corpo também por eles, tenho que fazer aquilo que eles fazem. Um bocadinho menos, porque se calhar não tenho tanta força e tanta capacidade de resposta como eles, mas vou fazer por isso. E foi aquilo que eu fiz até ao dia de hoje.

 

Olhamos hoje para o mundo. O que é que mais te preocupa a nível mundial?

O que me preocupa é as pessoas serem egoístas e só olharem para o umbigo delas e não nos darem o direito de igualdade.

 

Achas que não se deu o grande passo?

Se calhar o passo até já se deu mas eu como penso muito nos outros e não em mim, acho que deveríamos estar um bocadinho mais à vontade. Sermos mais amplos.

O pensamento não pode ser sempre para nós: eu, eu, eu. Não. Tem que ser globalmente. Mais abrangente.

 

Qual era o teu grande sonho?

O meu grande sonho era ter todos à minha volta bem, cheios de saúde e ninguém passar dificuldades.

 

Esse era o teu mundo perfeito.

Desde que as pessoas de quem eu gosto e aquelas que me rodeiam, mas principalmente o mundo todo, é mesmo assim. Mas aquelas de quem eu gosto e que me rodeiam estejam bem, para mim, eu penso sempre mais nos outros do que em mim. Para mim os outros são tudo. Se eles estão felizes, eu estou feliz.

 

Para além dos bombeiros, na tua vida, no teu dia a dia, enquanto mulher nesta sociedade, tu és de Benavente, trabalhas em Benavente, é fácil viver-se e trabalhar-se no mesmo lugar?

Eu penso que sim porque a minha vida é isto, casa, bombeiros e amigos. Neste período não podemos estar com os amigos que é isso que nos custa mais, e com a família, mas é fácil porque toda a gente me conhece, é a Vera. Vai ali a manina dos bombeiros. Oh Pai, esta menina é aquela que me levou. É recompensante.

 

Sentes-te acarinhada?

Sim. Também faço por isso não por parecer bem, faço por isso porque é meu, está em mim: acarinhar, ajudar, quando posso e enquanto cá estiver é o que eu vou fazer. Dar colo. Eu costumo dizer aos nossos velhinhos que transportas, eles chamam-nos princesas, e eu trato os meus doentes todas por princesas e amores  mas, um simples aperto de mão, nesta altura do campeonato em que não se pode dar mais nada, para mim é tudo.

Um pequeno toque.

Um miminho que seja. Passar a mão pela cara, uma luva com uma máscara. Esta semana fui fazer uma emergência aqui em Benavente, de um menino, em que a primeira coisa, quando lá chego equipada da cabeça aos pés e ele não sabia que era eu, foi vir dar-me um beijo e um abraço.  Eu ia dizer que não? Não. Seja o que Deus quiser, um beijo e um abraço.

 

Pessoalmente, achas que estes momentos  que estamos a viver te deixam marcas na Vera mulher ou na Vera bombeira?

Na  Vera mulher. A farda pode importar, mas isto sou eu. Estas marcas não poderiam deixar de existir porque é meu. Eu dou de mim a tudo.

 

Vera, foi um prazer falar contigo, desejar-te as melhores felicidades em nome do município de Benavente. Tu és este ano um dos rostos, mas representas todas as mulheres, em todas as corporações de bombeiros deste país. 

É isso que eu quero passar, eu só dei a cara para a fotografia, mas eu represento todo o corpo ativo e todas as mulheres, bombeiras a nível nacional.

 

Foi um prazer muito grande, tudo a correr pelo melhor. E que daqui a um ano já possamos estar aqui a falar um com o outro, sem máscara.

 

Entrevista: Joaquim Salvador

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