Fátima Abadia, encarregada geral na Fundação Padre Tobias, no Centro de Bem Estar e Social, em Samora Correia.
Fátima, quando era miúda qual era o sonho que tinha? O que é que gostava de fazer, o que pensava ser na vida?
Quando era miúda e estudava, sempre achei que queria ser enfermeira. Gostava de ser enfermeira, mas depois acabei por não concluir devido ás falta económicas que os meus pais tinham e daí encaminharam-me para aquilo que aparecesse para começar a trabalhar.
Há quantos anos trabalha?
Eu trabalho desde os 16 anos. Aliás, em fiz a escola com 12 anos e na altura vivíamos no Alentejo, e vivia-se mal, não havia possibilidades de estudar e eu comecei a trabalhar, a fazer aquilo que calhava junto com a minha mãe.
Em que altura é que encontra uma profissão como a que tem hoje? Em que altura da sua vida?
Há 20 anos atrás.
Há 20 anos atrás que é cuidadora, digamos assim.
Exatamente, comecei como auxiliar do serviço geral, a cuidar dos utentes, fiz dez anos e ao fim de 10 anos quando a encarregada de serviços gerais que aqui estava se reformou, passei a encarregada de serviços gerais.
O que é que mais leva para casa, ou do seu dia-a-dia, da sua profissão?
Não devia levar, mas levo um pouco de tudo. Desde o bem estar dos utentes, se eles ficaram bem, se vão continuar bem, se o trabalho foi desempenhado como nós achamos que deveria ficar, se as funcionárias acabaram por ficar satisfeitas, ou não. Acho que um bocadinho de tudo. Há quem diga que o trabalho fica á porta mas é muito difícil.
É isso que lhe ia perguntar. A auxiliar e a mulher, elas subdividem-se ou a auxiliar vai muitas vezes com a mulher para casa?
Vai, vai…
E emocionalmente? Como é trabalhar numa instituição como esta, em que falamos de muitas pessoas. Como é que é, emocionalmente, gerir isso, para si?
Temos que ter um bocado de sangue frio, porque por vezes não podemos transparecer o que nos vai na alma. Eles já estão em baixo, estão deprimidos, já têm dificuldades e nós tentamos sempre dar-lhes ânimo e apoio, e tentar levá-los para cima. Porque se na altura vamos dizer: ah coitado, não sei o quê, realmente é verdade… Não. Temos que dizer: isso não é assim, vamos dizer de outra forma e tentar aliviá-los.
E o contrário? Quantas vezes já veio para o trabalho em baixo, com os problemas que todos enfrentamos. Já teve alguma situação de ser o contrário? De serem os próprios idosos a pô-la para cima?
Sim. Já. Já porque já são muitos anos …
Criou-se aqui uma relação…
Certo. Eu vim para aqui com utentes que ainda estavam em Centro de Dia e hoje alguns deles já partiram e outros estão acamados. Eles habituam-se a ver-nos bem-dispostas e por vezes há um dia em que nós não sorrimos, ou que não estamos tão bem dispostas e eles perguntam logo: ah querida, o que é que tem? Está doente? Eles apercebem-se de que nós estamos menos bem.
Enquanto mulher, o que é que mais a preocupa nos dias de hoje?
Neste momento preocupa-me esta pandemia e como é que isto irá ter um fim, porque é muito difícil. E neste momento é o que mais me preocupa porque tenho uma mãe com 76 anos que estava em casa, que estava em Centro de Dia, porque tem esse apoio, depois o Centro de Dia para ela fechou e ela está fechada em casa e eu tive que contratar uma pessoa para ir lá dar-lhe um suporte que eu não consigo dar, e neste momento olho para ela e preocupa-me como filha, pronto, e como cuidadora, quando é que isto vai acabar e quando é que as pessoas começam a ter uma vida normal.
Diga-me uma coisa, quando começou tudo isto da pandemia, quando isto surge não é, que não percebíamos o que é que nos ia acontecer, que volta é que isto ia dar, trabalhando onde trabalhava, como é que viveu estes dias?
Como é que foram para si esses dias… começaram os primeiros casos a surgir. Sim, nós no inicio da pandemia, quando isto começou, nunca ninguém pensou que isto poderia atingir as proporções que atingiu. Na altura a minha mãe estava aqui, foi para casa e eu, não sabendo muito bem como lidar com esta situação e como lidar com ela, no geral, e tirei duas semanas de férias e fiquei em casa com ela.
Isto foi-se agravando cada vez mais, e cheguei à conclusão que tinha de ir trabalhar, não podia mesmo e adaptar a minha vida e a vida dela de forma a que eu pudesse trabalhar.
Depois era o medo de estar aqui, de trabalhar aqui, de levar para casa para ela e tivemos aqui uma altura, dez meses, em que conseguimos controlar a situação e depois quando tivemos o surto, foi o descalabro.
Era isso que eu ia perguntar-lhe agora. Quando se depara propriamente com o inimigo à sua frente e estar aqui no sitio aqui onde trabalha e ter o inimigo cá dentro. Como é que foram vividos esses dias?
Foi muito difícil. Foi muito difícil.
Teve medo? Medo não sei, mas um bocado apreensiva e sem saber o que viria ali e o que poderia acontecer. É muito difícil. E depois ver as pessoas que andavam no lar de uma ponta à outra e deixaram de andar, deixaram de poder.
Houve um dia em que eu cheguei a casa eram onze horas da noite com 16 horas de trabalho. Eu cheguei a casa, tirei a minha roupa toda, fiquei só com a minha roupa interior, bebi um iogurte e chorei, chorei, chorei e pensava: não é possível, uma coisa que nós construímos e agora de um momento para o outro vai tudo por água abaixo. Isto não está a acontecer, isto não é real. Não pode ser. Tanto para mim como pelas minhas colegas, não foi fácil. Tanto gerir com os utentes, gerir os EPIS (equipamento de proteção individual), como deveríamos gerir, o que vestíamos ou que não vestíamos. O que era num dia, no outro já não era. As normas saiam sempre diferentes. Foi muito difícil.
E nessas alturas, como é que se vai para casa, para a nossa família?
A ida para casa era cansada, mas com a minha consciência descansada de que tinha feito tudo aquilo que eu conseguia fazer para que eles ficassem bem e tentar minimizar o sofrimento deles que já era muito.
Como mulher, olhando para o mundo, o que é que acontecesse que ainda não aconteceu? Para as mulheres?
Há mulheres que ainda vivem com muitas represálias, a violência doméstica, pessoas que são assassinadas todos os dias pelos companheiros. Não faz sentido. Toda a pessoa tem o direito, toda a mulher tem o direito de ser mulher e de ter a liberdade dela.
De sermos iguais. Exatamente.
É uma mulher feliz? Sou.
Um episódio que tenha acontecido e que a tenha marcado nestes 20 anos a trabalhar com os idosos?
Não sei, eles são tantos, são tantas emoções ao longo do dia que por vezes é difícil.
Emocionalmente é uma vida cheia, não é?
É, e sentimo-nos felizes quando para eles, uma coisa que para nós é tão simples e eles dizem que não conseguem fazer isto, ou chegar aqui ou porque estão a chorar, por exemplo, choram porque têm saudades dos filhos, e nós vimos ao telefone. Nesta pandemia cheguei a usar muitas vezes o meu telefone e fazer videochamadas para os familiares, no whatasapp e via Messenger e eles só de verem os filhos lá do outro lado ficam felizes e nós acabamos por ficar bem connosco porque eles ficam mais calmos. É uma coisa tão simples.
Vocês como cuidadoras também que teriam de minimizar aqui esta …
Ao vermos que eles ficam bem, nós ficamos felizes. Ficamos descansados.
Fátima, gostei de saber que é uma mulher feliz. Desejar-lhe as maiores felicidades para a sua vida profissional e para a sua vida pessoal.
Foi um prazer estar aqui consigo.
Obrigada.